quarta-feira, 10 de março de 2010

Leão e Leões

No meio da savana africana um grupo de leões vive gozando da mais plena liberdade, mesmo que isso muitas vezes signifique lutas mortais entre os machos do grupo pelo controle do território, e claro, pelo prazer de transar com todas as fêmeas do lugar.

Um único leão pode ter, em um único dia, cerca de 50 ereções! Pobres fêmeas, que no ato sexual são, literalmente, devoradas pelo macho sedento e cheio de vitalidade e vigor.

E assim o mundo dos leões, estes gigantes felinos (e de comportamento muito próximo do gato doméstico), se resumem a três princípios: liberdade/sexo/violência.

Havia tempos que o Leão Contador de Histórias, representante singular do reino animal (especialmente por não gostar e não aprovar o termo reino referindo-se a organização do mundo animal), não retornava ao seu hábitat de origem. Por um longo tempo o nosso leão mantivera-se ausente, distante, perdido dentro de si mesmo em meio a leituras intrigantes. Mas o dia de sair da cadeira, levantar-se, e retomar sua jornada chegou! E pensou “ah, nada melhor que voltar aos velhos tempos, rever os velhos amigos”.

Chegando a savana africana lágrimas caíram de seus olhos, afinal não é todo dia que se pode ver zebras, búfalos, tigres, elefantes, bisões, girafas, crocodilos, todos em liberdade e na mais pura sintonia com suas naturezas (onde a vida e a morte se confundem, se coligam, em um universo sem dicotomias).

Depois de muito andar avistou um grupo de leões. E mal começou a se aproximar quando ouvira um estrondo feroz, voraz, do macho alfa do grupo: “Rghhhhhhhhhhrrrrrrr!!!!!!!” (isso em português significa – ei estrangeiro! Vá embora, quem manda aqui sou eu, só eu, eu, eu, eu, eu, eu...!!!).

O Leão Contador de Histórias, sabedor de sua missão e dos riscos que ele representa (afinal os animais estão presos numa ordem antinatural, imposta sabe-se lá por quem, mas desconfia-se que os humanos fazem parte disso, deste plano alienante de toda a vida) decidira encarar o macho alfa do grupo, não para brigar, mas para dialogar.

Na primeira tentativa de diálogo o macho alfa já partiu para cima do nosso leão que recebera duros golpes, fazendo-o cair violentamente no chão. Mal se levantou e o macho alfa viera com mordidas atrozes, sanguinolentas. “Parece que é o fim” pensou o Leão Contador de Histórias.

Contudo a coisa começou a mudar quando o nosso leão dissera, aos frangalhos e quase padecendo: “eu? Ahahahaa, não existe eu....não quero ser líder de grupo, de bando algum, pegue suas fêmeas, os outros leões, e seja mais um! Mais um! Você é mais um!”.

O macho alfa, meio sem saber como reagir, indagou: “o que você quer dizer com isso?”.

“Me escute, alguma vez você já se perguntou por que quer ser um alfa?”.

“Ué, é de nossa natureza. Mandar é bom, transar com todas as fêmeas é melhor ainda”.

“Você poderia continuar transando com todas as fêmeas, isso não é ruim, mas não a ponto de ter que matar outros leões para isso. Isso de ser alfa é mera competição, e burra, pois estamos nos matando uns aos outros”.

“Você já matou alguém?” – desafiou o macho alfa.

“Sim, sim. Isso já ocorrera, na maioria das vezes para me defender. Em outras ocasiões era a fome ou mesmo animais alienadores que mereceram as minhas garras em suas gargantas”.

“Mas, se eu não matar, quem vai colocar ordem no grupo? Quem vai dar a direção?”.

“A direção sempre esteve dentro de você mesmo, não é preciso seguir ninguém. Não é preciso que um terceiro lhe diga o que fazer, como fazer, porque a sua vida é direcionada pelo seu eu mais íntimo, que não é individualista, que não quer direcionar as pessoas, apenas a si mesmo, obedecendo à regra mais natural de que é vivermos em coletividade de maneira livre/cheia de cumplicidade”.

“Está vendo os outros leões?” – aponta para o bando – “Sim, sim” – “Pois então, veja os olhos, os seus rostos, todos vivendo no medo, no temor, obedecendo-lhe cegamente por puro terror, sem felicidade alguma, parecem uns mortos-vivos”.

“Cara, é mesmo....ninguém aqui sorri, ninguém aqui diz a verdade, fala o que pensa...que vergonha”.

“É isso que estou tentando de dizer amigo. Precisei sangrar até quase morrer para te fazer entender, abandone essa coisa de ser alfa, liberte a todos!”

De repente o antes poderoso macho alfa virou-se para o bando, que de imediato abaixara as suas cabeças (como era de costume, dentro de uma lógica hierarquizada), e logo: “Não abaixem suas cabeças, me olhem nos olhos agora.” Devagar todos iam mudando a postura, e em segundos todos os leões e leoas fitavam-lhe os olhos.

“Isso aqui não é um grupo. Não é um bando. Não é um reino. Nada disso, somos todos leões. Sim, somos todos leões. E vamos viver como leões, deixemos a hierarquia para os humanos, para aqueles que venderam a si mesmos em troca da felicidade mais efêmera que está no poder”.

“Não se justifica olhar nos olhos de vocês irmãos leões e ver que muitos de vocês nunca tiveram o prazer de uma fêmea, pois eu, em minha ignorância e arrogância, como líder de grupo concentrava todas em minhas mãos. Pois então, eu agora vos liberto de todas as obrigações, estas só existem entre vocês e sua natureza, sua natureza de leões, e como leões vamos viver em verdadeira liberdade”. “Sois livres!!!”

E assim, após este urro de libertação, todos sentiram-se livres para viver, pela primeira vez, em uma verdadeira comunidade. Sem machos-alfa, sem líderes, e o Leão Contador de Histórias, recuperado de suas feridas de batalha, pode vislumbrar duas cenas marcantes: todos caçando zebras juntos, machos e fêmeas, e além, todos transando no meio da savana como numa orgia transcendental.

2 comentários:

  1. Amei o texto. Você foi brilhante, Tiago! Parabéns, parabéns e parabéns. Vou indicar esse texto para o professor de História de minha escola, onde só tem leões alfas sanguinolentos, para ele trabalhar em sala de aula. Mais tarde, quando eu assumir novamente a regência, eu o utilizarei também. Beijos.

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  2. Obrigado! Sobre usá-lo em sala de aula isso dignifica ainda mais o meu trabalho, as minhas ideias.

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